Notas finais de uma visita de médico
O Festival de Locarno teve um arranque assim-assim. Felizmente, tinha visto dois filmes de realizadores portugueses em Lisboa, antes desta visita relâmpago ao festival dos leopardos – falhou o de Pedro Costa, o tão aguardado Vitalina Varela.
Começo por curvar-me perante o novo de João Nicolau, comédia musical que acredita na vida e no amor. Trata-se de uma história de um delegado comercial de uma empresa de alarmes que descobre estar apaixonado à beira dos 70. O filme é um mergulho num estado de graça espiritual sem fazer muita força: basta acreditar no carisma de Miguel Lobo Antunes, no humor do argumento de Mariana Ricardo e do mano (sim, o Nicolau) e numa corrosão silenciosa. Vão ver a correr quando estrear (má notícia: não será em breve…).
Depois, outra curvatura. Neste caso, para o luso-suíço Basil da Cunha, de regresso com O Fim do Mundo, mais um filme na Reboleira, na zona em que os brancos chamam “barracas”. Produção suíça que chega à competição e impõe Basil como um nome a seguir num cinema destemido e que aqui flirta com o “thriller” de gangsters. O conto de um jovem cabo-verdiano nascido em Portugal que regressa ao bairro e é olhado como um “outsider”. Uma narrativa que repensa noções da tragédia clássica e que é capaz de jogos de intriga sem clichés e uma força emocional insuspeita. A Terratreme, que ajudou na produção, tem obrigação que este filme chegue aos ecrãs portugueses.
Fora de competição, Prazer, Camaradas, de José Filipe Costa, uma experiência do real onde o realizador português pede a uma série de voluntários do pós-25 de Abril para recriarem hoje as suas experiências nas cooperativas de Aveiras de Cima.
Longe de ser perfeito, é uma obra que nos convoca para uma essência dolorosamente portuguesa, sem medo de brejeirices e com um humor honesto. Um imenso jogo lúdico numa proposta que cruza os limites entre o cinema experimental e o documental.