Fui o único jornalista português creditado no Festival de Jerusalém, que terminou no passado dia 5 de agosto. Um festival onde o cinema é mais sagrado do que tudo.
Rui Pedro Tendinha, em Jerusalém
Há festivais que tratam os convidados com profissionalismo, há outros que os deixam à solta. No Festival de Jerusalém, temos isso tudo mas de sobra há ainda mais alguma coisa. Essa coisa é fazer-nos sentir em casa.
Em Jerusalém a imprensa estrangeira não leva com lavagens cerebrais nem com os choradinhos dos boicotes constantes. É um festival íntegro e de cabeça voltada para a frente. Um festival organizado por uma cinemateca que pensa e respira cinema do futuro, sem esquecer o passado. Melhor de tudo, faz as escolhas sem medos de represálias políticas. Vi em Jerusalém curtas-metragens israelitas que criticam o sistema político deste governo, longas que falam sem complexos de temas que há uns tempos atrás eram tabus chocantes.
Em cinco dias de festival intenso apanha-se um banho cultural e social que inclui uma visita à cidade velha onde se espreita o mundo cristão, muçulmano e judeu. Torna-se depois mais fácil entrar na complexidade da comédia religiosa The Unorthodox, de Eliran Malka, a história rocambolesca do primeiro partido ortodoxo a ter entrada no parlamento israelita. Um argumento que põe o humor no dedo da ferida, neste caso os complexos e das descriminações de uma das facções mais poderosas dos judeus ortodoxos. É bem divertido apesar de ser excessivamente palavroso.
Quase às escondidas da Mostra de Veneza, Jerusalém mostrou em antestreia mundial outra pérola da casa, a curta A Letter to a Friend in Gaza, de Amos Gitai, um documentário clandestino sobre o abuso das tropas de Israel nos territórios da Palestina. Um filme sob o signo de Albert Camus com imagens recentes de soldados israelitas e palestinianos na Faixa de Gaza. Gitai, quando apresentou o filme, falou em ato de coragem do festival em apresentá-lo numa sessão com mais imprensa internacional do que local. A Letter to a Friend in Gaza funciona como um lamento. É meia-hora de cinema que toca bem lá no fundo.
Impossível também ficar indiferente à Sam Spiegel School, a escola de cinema de Jerusalém que se abriu à imprensa convidada para uma tour que foi um desfile de memórias de uma casa com tradição e de onde sairam cineastas como Nadav Lapid ou Ari Folman. David Lynch e Wim Wenders não são padrinhos à toa desta escola com o nome do produtor de Há Lodo no Cais e Lawrence da Arábia. Uma escola onde se ensina a filmar a matéria que melhor se conhece: nós mesmos e as nossas experiências mais pessoais.
E numa altura em que cada vez há mais mulheres a filmar em Israel, espreitámos também Virgins, de Keren Ben Rafael, história de mãe e filha. Uma mãe que luta para manter um café de praia esquecido e uma filha que desperta para os instintos sexuais. Foi talvez a grande desilusão do festival.
Perdido num panorama de filmes do mundo, encontrei Djon África, o único filme português. Filipa Reis e João Miller Guerra assinam este docu-drama sobre um jovem cabo-verdiano que chega a Cabo Verde pela primeira vez para tentar encontrar as suas raízes. O filme foi aplaudido e impressiona por uma suave humanidade que chega a comover. Mais outro filme português com a “marca” Terratreme que voa alto no circuito dos festivais internacionais. Por cá, está condenado ao desprezo do público português, cada vez mais em rota de colisão com o nosso cinema.
De Jerusalém vou levar o sabor dos sumos naturais de romã e o som constante das mesquitas ao fundo. Um festival que nos faz acreditar numa ideia de paz para Israel e querer decorar para sempre a palavra Toda (obrigado em hebraico).
Festival de Jerusalém - Um segredo israelita