“ Os evangélicos souberam atuar na margem, na periferia…”
Numa semana em que a Nitrato aposta na estreia de Divino Amor e recupera o belíssimo Ventos de Agosto (2014), conversa em dois tempos com o realizador e artista plástico Gabriel Mascaro, entre o Festival de Havana e o de Zurique. No seu cinema o contraste é precisamente um ganho.
Divino Amor é uma crónica de um Brasil futurista. Foi rodado em 2018 e à medida que o tempo passa acaba por ficar mais próximo da realidade…
Isso é muito curioso. Comecei a escrever o guião há 4 anos, numa altura em que já estava a perceber uma onda conservadora muito forte. Estamos a assistir a uma transformação que não se passa apenas no Brasil. Uma agenda que não é apenas conservadora, mas sim populista e nacionalista. Devo dizer que cresci numa periferia do Recife e vi de perto todo o processo evangélico a crescer. Onde não tem Estado, tem igreja! Os evangélicos são muito eficientes e pragmáticos no seu trabalho transformador. Mais tarde ou mais cedo, vi que tinha de acontecer o que aconteceu no Brasil. Só não esperava que fosse tão cedo e de forma tão radical. A cada semana este filme muda! Basta o Presidente fazer um discurso…No Carnaval ele estava a atacar a cultura gay no Brasil e o filme fala do Carnaval! Depois, também há pouco, o Moro falou sobre mapeamento genético da população. Curiosamente, o filme fala de DNA…Quando estávamos a fazer o “brainstorming” para o filme essa palavra era quase ridícula. Tentei apostar numa alegoria de um futuro próximo mas sem tecnologia, apenas falando de cultura. E o que se está a passar é uma transformação radical da cultura brasileira. Este projeto atual do Brasil entendeu que o importante é destruir outros modelos de cultura para cimentar aquilo que entendem de fomento da cultura conservadora. Trata-se de um projeto hegemónico assustador…
Por outro lado, o Gabriel não evita nos detalhes um imaginário de “sci-fi”, uma espécie de futurismo tropical...
Há imaginário tropical brutalista futurista, alicerçado na burocracia. A nossa grande herança dos portugueses é a burocracia dos cartórios.
Tentou também colocar o espetador em transe com a música eletrónica?
Sim, filmo uma religião muito viva, algo à frente do seu tempo. É preciso discutir que o projeto evangélico é igualmente estético. O meu desafio foi trabalhar com imagem onde não tem imagem. Tentei trazer a espiritualidade através da luz, da fumaça e da música. Além de colocar o espetador em transe, queria que a música reflectisse um imaginário de ambivalência, contrariando a tradição de “género”, sobretudo quando se trabalha com distopias. Aqui percebemos que é uma distopia mas a personagem julga que vive numa utopia, uma mulher que acha que o mundo é bom e que ainda poderá ser melhor. Mas o filme brinca um pouco com certas referências bíblicas para falar da própria tradição bíblica, usando até passagens bíblicas numa quase mistura de erotismo gospel.
E qual a metáfora de Ventos de Agosto?
À medida em que entramos no mapa geo-económico mundial, encontramos grandes contradições, com lugares muito isolados. O filme tem uma visão crítica desse tema apesar de não estar direcionado a nenhum lugar específico, apenas quer mostrar um espaço no Brasil. Filmo um lugar quase mítico, faixa de convergência global. Diria que fica criada uma ideia de tropicalidade… Ventos de Agosto brinca precisamente com isso, tentando construir um imaginário de fenómenos surreais onde a polícia não chega, as rochas respiram e as pedras têm pulmões. Enfim, um lugar onde os corpos reaparecem e as pessoas transam assim de uma maneira tranquila. Penso que pode ser uma espécie de etnografia surrealista. Ao mesmo tempo, tento um aspeto lúdico, algo que o Miguel Gomes também trabalha.
Mas esse lado etnográfico é desconstruído com humor…
Sim, com humor negro. No começo parece um documentário mas depois quase que entra no género do terror. Ao mesmo tempo, tento resgatar aquilo para um certo naturalismo. Ventos de Agosto brinca com as fronteiras dos géneros…
Acredita que o cinema brasileiro se deveria cruzar mais com o português? Nem que seja pelo regime da co-produção?
Esse é um caminho, sim. Mas cada filme tem a sua necessidade.
Muito olham para o Gabriel com uma esperança do novo cinema brasileiro. Isso pode ser um fardo para um cineasta?
Não, hoje a produção de cinema no Brasil é assim para o partilhado…Há mais cineastas importantes a fazer um cinema também pequeno e a oferecer coisas interessantes. Isso do grande nome do cinema brasileiro já não existe. Para o bem ou para o mal, tudo está muito partilhado. É mesmo importante não criarmos rótulos.
Uma coisa é certa, vocês os artistas brasileiros estão cada vez mais a reagir ao flagelo eleitoral que sucedeu. Acredita nessa coisa da arte ser reactiva?
Sim! Esses filmes que estão saindo agora anteviam aquilo que hoje estamos a viver. Mas em relação ao Divino Amor, o que sinto em relação ao tema é que os intelectuais no Brasil negligenciaram a discussão de algo fundamental: a importância da religião no Estado brasileiro. De alguma maneira, a esquerda brasileira tem uma relação muito forte com o catolicismo e quando esteve no poder não separou a Igreja e o Estado. Além disso, os evangélicos souberam atuar na margem, na periferia e foram associados a religião de “pobres”. Enfim, essa era uma religião que não ecoava muito na discussão política. De repente, quando se percebeu a sua força já era tarde demais e esse projeto de poder estava já extremamente avançado. Fizeram um projeto muito eficiente…Quando estava nas minhas pesquisas para o filme percebi que para alguém que nunca teve educação financeira e sempre gastou o dinheiro desordenadamente, ter finalmente hipótese de se organizar e dar 10% para a igreja, significa que a ascensão evangélica está ligada à parte económica. A vida de uma família que consegue organizar-se financeiramente muda subitamente. Além disso, o governo de Lula fez com que a classe média crescesse. Foram muitos os que deixaram de ser pobres para pertencer à classe média, só que muitos desses evangélicos associam a sua prosperidade à igreja.