Walter Salles
“ Jia Zhangke é e foi o cineasta certo no lugar certo”
Jia Zhangke- Um Homem de Fenyang é o último documentário de Walter Salles, cineasta maior do cinema brasileiro. O filme está agora em exibição e é um relato homenagem a um colega que é filmado como o maior tradutor do nosso tempo, Jia Zhangke. A conversa com o brasileiro ocorreu em Santa Maria da Feira
Faz um filme sobre um cineasta que tem sido quase sempre consensual. Se as coisas corressem mal, sentia que a cobrança poderia ser maior?
A ideia de fazer um filme sobre o Jia aconteceu muito cedo, mesmo antes de ele ganhar toda essa admiração. Uma admiração que foi ganhando amplitude à medida que a sua obra foi crescendo. Quem hoje descobre a sua obra vai ter uma perceção diferente daquela que eu tive no começo. Esse meu processo de olhar pelo retrovisor acabou por se refletir nas filmagens. O meu desejo inicial foi sobretudo de compreensão de um cinema que, ao mesmo tempo, acaba por ser tão expressivo como transcendente. Cada vez é mais difícil depararmo-nos com imagens que ainda conseguem desvendar o seu tempo.
E o processo levou sete anos, certo?
Sim! Na verdade, tudo nasceu de uma conversa com ele na Mostra de São Paulo, num ciclo organizado pelo Frodon. Mais tarde, a ideia do documentário veio como uma consequência do livro que organizámos através das conversas com o Jia e os seus colaboradores. É um livro que editámos no Brasil e em França.
A sensação com que se fica é que também uma troca entre cineastas. Um troca de fascínios, digamos assim… Cineasta a falar com cineasta…
Aqui estamos a ver uma obra em processo. Nesse sentido, ao contrário do que costuma acontecer, quando um cineasta jovem observa um cineasta mais consagrado, pareceu-me mais interessante debruçar-me sobre um cinema que me interessa mais do que qualquer outro. Na realidade, decorre a vontade de olhar para uma obra ainda a quente e ainda incompleta. Espero que a obra continue a acompanhar aquela mutação acelerada da China. Ele é e foi o cineasta certo no lugar certo. Não há país que se tenha transformado tanto nos últimos vinte anos como a China. Não consigo pensar em personagens que tenham passado por um arco dramatúrgico tão amplo como aqueles de Plataforma…Mas devo dizer que fiquei muito marcado por filmes de cineastas sobre cineatas. Aprendi não só muito sobre cinema mas também sobre aquilo que gere o nosso desejo de escolha de representação do mundo e como um personagem acaba por se tornar num possível intérprete daquela cultura e daquele momento.
O tempo, hélas…
No Jia estamos sempre a regressar a isso mesmo! Essa talvez seja a sua força central.
Esse seu desejo, dê por onde der, é um desejo cinéfilo. Sinto que cada há mais cineastas assumidamente não cinéfilos. Ao contrário de Tarantino, uma nova geração de cineastas não vai ao cinema ver o cinema dos colegas… Temos saudades de gente como o Peter Bogdanovich!
Quando tinha doze anos, graças à vida diplomática de meu pai, vivi em França. Detestava a escola e o frio e chuva parisiense constante, enfim, sentia muita falta da cultura da rua, aquela que tinha no Rio. Curiosamente, ao lado do nosso apartamento existia um cinema de repertório com sessões duplas. Foi ali, em criança, que descobri os Mizogushis, o neo-realismo italiano, boa parte da Nouvelle Vague, o Hawks, o Ford… Nessa altura, percebi que a vida era muito mais polifónica e ampla. Foi a cinefilia a formar-me sobre o mundo. Esse lado fundador obriga-me a manter-me fiel. E ainda deixo-me encantar, como aconteceu com a curta do Miguel Clara Vasconcelos, Vila do Conde Espraiada. Trata-se de um filme que me fez ver uma realidade que desconhecia e transportou-me para vários momentos na História que me interessam. Ofereceu-me possibilidades muito singulares de codificação daquele lugar do mundo. E é isso que procuro ainda encontrar no cinema- Aliás, neste mundo de constante multiplicação das imagens, isso é a única coisa que nos pode salvar.
Mas volto à pergunta, porque é que cada vez há mais cineastas que não sentem essa vontade de descobrir novo cinema?
Talvez porque entraram no cinema mais do que eu…O cinema, quando comecei a ver, era aquilo que nos unia, era a possibilidade de discussão, de conversar…O cinema não era apenas para entreter, era a possibilidade de compreensão do mundo.
A viagem que faz com o Jean-Michel Frondon ao mundo de Jia Zhangke nunca é intrusiva…
Nunca! Quisemos registar a memórias dos locais de filmagens dele e conhecer as personagens que serviram como fonte de inspiração para os filmes. Essa era a espinha dorsal e tudo girava em torno dessa matéria tão fugaz que é a memória. Seja como for, o momento em que o Jia fala das memórias do pai na revolução cultural não nasceu de uma pergunta. Aliás, eu nem sabia que a sua família tinha tido percalços tão grandes na revolução cultural.